sábado, 31 de outubro de 2009

Chama nos lombos, e nos lábios o cismo: Campbell


Sam Francis, Chinese Planet, 1963



We are like worlds


We bear to future times the secret news

That first was whispered to the new-made earth:

We are like worlds with nations in our thews,

Shaped for delight, and primed for endless birth.

We never kiss but vaster shapes possess

Our bodies: towering up into the skies,

We wear the night and thunder for our dress,

While, vaster than imagination, rise

Two giant forms, like cobras flexed to sting,

Bending their spines in one tremendous ring

With all the starlight burning through their eyes,

Fire in their loins, and on their lips the hiss

Of breath indrawn above some steep abyss.

When, like the sun, our heavenly desire

Has turned this flesh into a cloud of fire

Through which our nerves their strenuous lightning fork

Eternity has blossomed in an hour

And as we gaze upon that wondrous flower

We thin the world a beetle on its stalk.


Roy Campbell



Somos como mundos


Portamos aos tempos futuros as novas manchetes

Que antes foram sussurradas à terra recém-criada:

Somos como mundos com nações entre os jarretes,

Feitos para deleite, providos de uma incessante chegada.

Nunca beijamos mas possuímos mais vasta placenta 

Nossos corpos: soerguendo-se até o confinar, 

Envergando noite e trovão por vestimenta,

Enquanto, ao léu, mais vastos que imaginar,

Medram dois gigantes, feito cobras a armar o bote,

Contraindo suas vértebras em um só tremendo lote,

Com plena luz estelar nos olhos, a brilhar

Chama nos lombos, e nos lábios o sismo

Do sopro sorvido sobre algum fundo abismo.

Como, feito sol, nosso celestial rogo

Torna essa carne uma nuvem de fogo

Entre a qual, por nossos nervos, suas juntas distendidas ao máximo

A eternidade floresce em uma hora

E enquanto contemplamos a prodigiosa flora

Reduzimos o mundo a um besouro em seu limo.



* * *

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Alguna poesia de Fortaleza, alguns pés na água: Diego Vinhas


Webflyer do lançamento da antologia Meio-Dia



Alguna Poesia de Fortaleza


Será lançada hoje, 30 de outubro, no Café da Livraria Lua Nova, às dezoito e trinta, a antologia bilíngue [não me conformo com a limagem do trema] de poemas Meio-Dia, impressa pela Editora Vox, de Bahia Blanca, Argentina e organizada por Diego Vinhas. Um recorte pontual e elegante da polifonia e diversidade de vozes e estilos de gente que, em tempos recentes, andou cometendo versos aqui pelo Forte. Nela estão presentes Henrique Dídimo, Eduardo Jorge, Carlos Augusto Lima, Rodrigo Magalhães, Rodrigo Marques, Diana Mello, Virna Teixeira, Xênio Ruysconcellos, Eli Castro, Júlio Lira, Manoel Ricardo de Lima e Cândido Rolim. 

Ressalte-se a extrema elegância do editor, Diego Vinhas, ao não se auto-incluir. Diego, que é uma voz mais que interessante na cena poética brasileira e local, com seu instigante livro de estreia, Primeiro as coisas morrem [Sette Letras, 2004]. Diego, com esse futebolístico prenome, também frustrado torcedor de tricolores que começam com a letra "F": Fortaleza e Fluminense, flamantes candidatos respectivamente à 3ª e à 2ª divisão neste ano da Graça de 2009. 

Publico abaixo um poema de que gosto muito e, ainda melhor, me foi gentilmente dedicado por Diego Vinhas, frustrado torcedor de tricolores, mas que, da varanda de seu apartamento, divisa uma magnífica vista da enseada do Mucuripe, com seus barcos oscilando à distancia, a usina eólica ao fundo, navios fundeados ainda mais ao largo e a risca do mar a limiar um horizonte:



Dos Barcos

para Ruy Vasconcelos


alguns oscilam

no raso. alguns têm

o ventre na areia e

descamam ao sol,

menos barcos que

lagartos. alguns,

todos, um nome de

mulher, algumas

mulheres, uma, que

embaraça cheiro de

homem e maresia.

enquadro da varanda:

esquiva-se do postal

a siesta de cascos no

esgarçar da tarde-

noite. (o Estela gasto

da cachaça e lagos-

tins). seca, uma canção

para nunca. dos ho-

mens, dos barcos, a

vida em fogo baixo.

alguns pés na água.



* * *

Um sem-título inédito de Virna Teixeira

 

Barnett Newman, The Third, 1962



sargaços   céu com vertigem

torpor de mergulho


após o cerco de rochedos



*   *   *

Espasmo quase imperceptível: Williams


Pieter Brueghel, o Velho, Paisagem com a queda de ícaro, circa 1558



Landscape With The Fall of Icarus


According to Brueghel

when Icarus fell

it was spring


a farmer was ploughing

his field

the whole pageantry


of the year was

awake tingling

near


the edge of the sea

concerned

with itself


sweating in the sun

that melted

the wings' wax


unsignificantly

off the coast

there was


a splash quite unnoticed

this was

Icarus drowning



William Carlos Williams



Paisagem com a queda de Ícaro


Segundo Brueghel

quando Ícaro caiu

era primavera


um lavrador arava

seu campo

toda a pompa


do ano seguia

desperta cintilando

rente


à borda do mar

entretida

consigo mesma


suando ao sol

que derreteu

a cera das asas


irressaltado

ao largo da costa

havia


um espasmo quase imperceptível

era Ícaro

afogando-se




Nota - clique sobre o quadro para apreciar a tela em definição ampla.


* * *

Resvalam como sobre água


[s/i/c]

 


Water Music


The words are a beautiful music.

The words bounce like in water.


Water music,

loud in the clearing


off the boats,

birds, leaves.


They look for a place

to sit and eat


no meaning,

no point.


Robert Creeley



Música Aquática


As palavras são bela música.

As palavras resvalam como sobre água.


Música aquática,

volumosa no afastamento


de navios, 

aves, folhas.


Elas buscam um lugar

para sentar e comer—


sem sentido

sem assunto.


* * *

domingo, 25 de outubro de 2009

Devagar, o coração respira em música: O'Hara


Claude Monet, Water Lilies, 1926


A Quiet Poem


When music is far enough away

the eyelid does not often move


and objects are still as lavender

without breath or distant rejoinder.


The cloud is then so subtly dragged

away by the silver flying machine


that the thought of it alone echoes

unbelievably; the sound of the motor falls


like a coin toward the ocean's floor

and the eye does not flicker


as it does when in the loud sun a coin

rises and nicks the near air. Now,


slowly, the heart breathes to music

while the coins lie in wet yellow sand.


Frank O'Hara



Um Poema Calmo


Quando a música segue distante demais

a pálpebra nem sempre se move


E os objetos estão calmos feito alfazema

sem sopro ou réplica remota.


A nuvem segue assim tão levemente rebocada

pela máquina voadora cor de prata


que o simples pensamento dela ecoa

incrivelmente; o ruído do motor baixa


como uma moeda ao fundo do oceano

e os olhos não pestanejam


como quando a sol a pino uma moeda

eleva-se e fissura o ar fino. Agora, 


devagar, o coração respira em música

enquanto a moeda jaz sobre a areia úmida. 



* * *


quinta-feira, 22 de outubro de 2009

O bem não feito, o amor não dado, o tempo gasto em nada: Larkin

Otto Dix, Dance of the Death, 1924



Aubade


I work all day, and get half drunk at night.

Waking at four to soundless dark, I stare.

In time the curtain edges will grow light.

Till then I see what's really always there:

Unresting death, a whole day nearer now,

Making all thought impossible but how

And where and when I shall myself die.

Arid interrogation: yet the dread

Of dying, and being dead,

Flashes afresh to hold and horrify.


The mind blanks at the glare. Not in remorse

- The good not used, the love not given, time

Torn off unused - nor wretchedly because

An only life can take so long to climb

Clear of its wrong beginnings, and may never:

But at the total emptiness forever,

The sure extinction that we travel to

And shall be lost in always. Not to be here,

Not to be anywhere,

And soon; nothing more terrible, nothing more true.


This is a special way of being afraid

No trick dispels. Religion used to try,

That vast moth-eaten musical brocade

Created to pretend we never die,

And specious stuff that says no rational being

Can fear a thing it cannot feel, not seeing

that this is what we fear - no sight, no sound,

No touch or taste or smell, nothing to think with,

Nothing to love or link with,

The anaesthetic from which none come round.


And so it stays just on the edge of vision,

A small unfocused blur, a standing chill

That slows each impulse down to indecision

Most things may never happen: this one will,

And realisation of it rages out

In furnace fear when we are caught without

People or drink. Courage is no good:

It means not scaring others. Being brave

Lets no-one off the grave.

Death is no different whined at than withstood.


Slowly light strengthens, and the room takes shape.

It stands plain as a wardrobe, what we know,

Have always known, know that we can't escape

Yet can't accept. One side will have to go.

Meanwhile telephones crouch, getting ready to ring

In locked-up offices, and all the uncaring

Intricate rented world begins to rouse.

The sky is white as clay, with no sun.

Work has to be done.

Postmen like doctors go from house to house.


Philip Lakin



Aubade


Trabalho o dia todo, e à noite fico meio bêbado.

Acordo às quatro em silente breu, e observo.

Breve da cortina a luz vertendo-se pelo lado

E até então, vejo o que sempre esteve lá, em nervo:

Incansável morte, agora um dia mais rente

Tornando impossível pensar com que mente

E onde e quando eu mesmo devo morrer.

Árida questão: temor absorto

de morrer, de estar morto,

Lampeja vivo a me dominar e estremecer.


A mente lacuna-se à visão. Não em remorso

O bem não feito, o amor não dado, o gasto

Tempo em nada – nem lamentavelmente o esforço

Que uma vida toma ao escalar seu lento rasto

Certa de seus começos equívocos, e nada de acerto:

Mas do total vazio sempre perto,

A segura extinção que será nosso paradeiro

E quase sempre se esquece. Não estar mais aqui,

Não estar mais ali,

E em breve; nada mais terrível e mais verdadeiro.


Nenhum truque dissipa esse medo único. A religião escorre

Um vasto, comido por traças, brocado musical

Criado para fazer de conta que não se morre,

E teorias especiosas dizem que um ser racional

Não pode temer o que não sente – nem som, nem sinal

Nem toque ou gosto ou cheiro, nada com que pensar

Nada para amar ou se ligar,

O anestésico para o qual nada vem de encontro, afinal. 


Então ela fica bem à beira da visão

Uma mancha desfocada, persistente frieza

Que ralenta cada impulso em indecisão

Muita coisa jamais haverá: ela é certeza,

E sua realidade raiva acende

Na fornalha do medo quando a gente se pega sem

Companhia ou trago. Não adianta coragem:

Significa não assustar os outros. Ter postura

Não livra ninguém da sepultura.

A morte não muda, se vista com pranto ou vantagem.


Lentamente a vida encorpa, e o quarto se encontorna

E assoma plano como um armário, o que se sabe,

sempre soube, o saber que ela não se contorna

ainda que se não aceite. Há um lado que não cabe.

Enquanto telefones vergam-se, preparando o toque

Em escritórios fechados, e feito de intricado xaboque

De alugado descaso o mundo desperta sua vasa.

O céu é claro como barro, sem sol ao limiar

Alguém tem de trabalhar.

Carteiros como médicos vão de casa em casa.



* * *

segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Atchim!


[s/i/c]


ilação


uma vitória de pirro 

sobre o resfriado

acaba em espirro.  


* * *

Quem não chora


Capa do nº inicial de Para Mamíferos


Nova Revista à Vista


Próxima quinta, dezenove e trinta, dia vinte e dois, no espaço contíguo à Livraria Ao Livro Técnico do Centro Cultural Dragão do Mar, lançamento da revista de literatura e arte Para Mamíferos. Os editores são Pedro Salgueiro, Tércia Montenegro, Raymundo Netto, Nerilson Moreira, Irajacy Costa e Glauco Sobreira.

Conto inédito de Dalton Trevisan; dossiê sobre a literatura cearense quase recente, pós-Grupo Clã (Caio Carneiro, José Maia, Mário Pontes, José Alcides Pinto et alli); traduções de Gertrude Stein e Ernest Hemingway, por Virna Teixeira e Xênio Ruysconcellos; poemas e prosas de Henrique Dídimo, Fayga Bedê, Carlos Nóbrega, Everardo Norões, Carmélia Aragão e Amílcar Bettega; texto de Sânzio de Azevedo; entrevista com Ana Miranda; além de tiras de quadrinhos do Glauco; artigo de Gil Brandão sobre o Teatro Radical Brasileiro, do qual não faço a menor ideia; inédito de Juarez Barroso; matéria sobre a Shoah, entre outros presentinhos.

O preço é só dez mangos. Revistas de papéis e tintas como a Para são cada vez mais difíceis de fazer e, sobretudo, manter nesses tempos virtuais. Seja solidário com os escritores de sua cidade e até d'além-mar. Eles também são mamíferos e têm, de algum modo, de pagar a rapadura e prover o leite dos meninos.

É engraçado a grita geral sobre o marasmo cultural em Fortaleza. E, quando um grupo de escritores, que traz em sua equipe nomes do talento de um Pedro Salgueiro e Tércia Montenegro, resolve lançar uma revista, já de cara neguinho não vai. Neguinho não compra. Neguinho não quer saber. E isso numa cidade com cursos de jornalismo, publicidade, audiovisual, moda, letras, arquitetura, música, artes plásticas (e não-de-todo-plásticas) escorrendo pelo ladrão.

Talvez porque neguinho desconheça que quem não chora não mama.

Para Mamíferos começa bem. Começa, aliás, com o bom-senso do número 1. Não houve número zero. Ainda bem. O zero, invenção dos sofisiticados árabes, à altura da Idade Média,  é para aquilo que não existe. Eis porque nada se pode dividir por zero. Mas a Para é para ser dividida entre muitos. E ainda mais a esse preço módico de dez mi-réis. 

Pare. Pense. Leia a Para. E olhe que seu dia, apesar de vir, virá com menos azedume e mais verniz.


P.S. -- Havia esquecido e o Renato Mazzini me lembrou: o contato para aquisição da revista, bem como para sugestões, comentários, críticas, etc. é:  paramamiferos@gmail.com  


*   *   *


sábado, 17 de outubro de 2009

Ei, meu senhor, eu quero!


[s/i/c]


Chiste


Aconteceu com uma das cearenses mais belas que já conheci. À época, morava em São Paulo e pós-graduava na Puc. O noivo ficara no Ceará, tomando conta de uma fazenda. Visitava-a muito em raro. Ela na flor da idade. Na quente flor da idade. 

Um dia, no apartamento em que dividia com outras duas pós-graduandas - por sinal, não muito menos belas - notaram que precisavam de um soquete. Resoluta, foi à casa de material elétrico mais próxima. E, junto ao balcão, com todo seu charme, encarando um vendedor impessoal, paulistano e perplexo, semi-enforcado em sua gravata, disse:

-Ei, meu senhor, o senhor pode me dar um boquete?

E o vendedor perplexo, puxando o colarinho, olhando para os lados, para os densos olhos negros,  a suavidade dos relevos da moça do lado de lá do balcão, do lado de lá de um fino vestido, para os cachos de lustres no teto da loja:

-Como?

E ela, com a ênfase dos incompreendidos:

-Um boquete, meu senhor, eu quero um boquete!


* * *

Dos 140 caracteres


[s/i/c]


Divagação sobre o Twitter

A minha amada me mandou um bilhetinho

Só para ver se eu conhecia a letra dela

A letra dela já era conhecida

Ela me amava e eu também amava ela

Mandei fazer um 'boquê' pra minha amada

De abonina 'fulô' mais disfarçada

O nome dela era estrela matutina

Adeus, menina, serenou na madrugada”

[Canção Tradicional]

Não resta dúvida que a nova febre da internet, o Twitter, na mesma linha das redes de sociabilidade, Facebooks, Orkuts, My Spaces e quejandos, ainda mais que o fenômeno dos blogues, conforma uma espécie de tentativa: pulverizar ao máximo algo como a suposta experiência em tempo real de programas televisivos como o Big Brother. Tentar esticá-la ao maior número possível de pessoas, sem os custos absurdos que uma rede de TV tem para manter alguns primatas numa jaula e emitir os sinais de imagem da jaula aos quatro cantos de um país-continente. 
Isso se acentua mais ainda num veículo que mistura no mesmo caldeirão anônimos e celebridades. Pessoas físicas e pessoas jurídicas. Fãs e “ídolos”. Admiradores e admirados. E em que a vida privada se destina ao público em espetáculo. Esticando e ampliando o reflexo de Narciso a um nível incomensurável. Desde que se pode ler que qualquer idiota se espreguiçou às sete da noite ou assoou o ranho do nariz às duas da tarde. 
O Twitter segue na vanguarda no sentido de levar ao paroxismo esse senso de espetacularização da vida de que nos falam Orwell e Guy Debord, entre outros autores.
No caso do Twitter, o diferencial vai por um limite: a pequena quantidade de texto a ser escrito. Isso, de início, fascina. Aparentemente parece algo bom. Parece. Porque nem sempre concisão tem a ver com parcas palavras. Um escritor barroco como Vieira, prolixo e derramado, é incrivelmente conciso. Porque ao volume de suas palavras corresponde um imenso volume de ideias, referências, sensações, relações, alusões, associações. Eis porque Fernando Pessoa o chamava de “imperador da língua portuguesa”. É diferente de se dizer: “tirei um cochilo de duas horas”. Ou “próxima semana vou pra Recife”. Ou “nada melhor que almoçar em casa”. Ou ainda “hoje comprei duas passagens na Azul e paguei uma”.
Sim. E daí?
Na verdade, a coisa tem mais a ver com velocidade, aceleração de ritmo, abreviação. Não com concisão. De fato, li num tweet recente: “se você imagina ou já tem a resposta para uma pergunta, por favor, não faça a pergunta. Não pra mim. Meu tempo é ouro”. Nada podeira sintetizar melhor o veículo que esse bilhetinho pouco compassivo. 
O Twitter parece ser o veículo dos que não podem perder tempo. Quer dizer, não podem perder dinheiro. E o dinheiro, Deus do homem moderno, decreta que tudo dever ser abreviado para que a gente se esqueça da morte, viva sempre “no presente” e evite pensamentos, trabalhos e/ou estudos que exigiam só até algum tempo atrás um pouco mais de paciência e artesanalidade. No tempo em que o Google ainda não havia exterminado um bocado de intuição. Benjamin já quase dizia isso com todas as letras oito décadas atrás:

Talvez ninguém tenha descrito melhor que Paul Valéry a imagem espiritual desse mundo de artífices, do qual provém o narrador. Falando das coisas perfeitas que se encontram na natureza, pérolas imaculadas, vinhos encorpados e maduros, criaturas realmente completas, ele as descreve como "o produto precioso de uma longa cadeia de causas semelhantes entre si". O acúmulo dessas causas só teria limites temporais quando fosse atingida a perfeição. "Antigamente o homem imitava essa paciência", prossegue Valéry. "Iluminuras, marfins profundamente entalhados; pedras duras, perfeitamente polidas e claramente gravadas; lacas e pinturas obtidas pela superposição de uma quantidade de camadas finas e translúcidas... - todas essas produções de uma indústria tenaz e virtuosística cessaram, e já passou o tempo em que o tempo não contava. O homem de hoje não cultiva o que não pode ser abreviado." Com efeito, o homem conseguiu abreviar até a narrativa. Assistimos em nossos dias ao nascimento da short story, que se emancipou da tradição oral e não mais permite essa lenta superposição de camadas finas e translúcidas, que representa a melhor imagem do processo pelo qual a narrativa perfeita vem à luz do dia, como coroamento das várias camadas constituídas pelas narrações sucessivas.
[“O Narrador” in Walter Benjamin: Magia, Técnica, Arte, Política. Vol. 1. Brasiliense: São Paulo, p. 206, trad. de Sérgio Paulo Rouanet]

Ao economizar tempo, ao evitar "perdê-lo" em longas discussões ou trabalhos longos e continuados, o que se deseja é cavar o máximo de tempo possível para coisas que se consome. Para mercado. Para mercadoria. Ora, informação é mercadoria. E é um tanto ingênuo deixar-se levar na onda dos relativismos e entender que se possa "usar" o Twitter de uma "boa" forma. No fundo, a "forma" do Twitter é quem usa a todos de modo indistinto e uniforme.
É óbvio que as novas mídias abriram enormes espaços para que muitas mais pessoas escrevam, ao invés de só lerem, ou de manterem nas gavetas o que produzem. Mas é ingênuo crer que todos possam, digamos, ser escritores. Assim como nem todos podem ser músicos ou luthiers ou relojoeiros ou vidraceiros. Há aptidões naturais, aqui, que sempre se ressaltarão em qualquer campo de atividade. Em parte porque a destreza que as pessoas tem para realizar determinadas tarefas é muito mais aguçada em algumas atividades que em outras. Ou ainda, é muito mais aguçada, dentro de certa atividade, que a de outras pessoas. E, por alguma razão, escrever com desenvoltura, graça e unicidade, se desenvolve mais rapidamente, com mais idiossincrasia e estilo, em alguns do que em outros. É algo para o qual se educa, muito óbvia e pacientemente. Mas educação só não basta, sem um  pouquinho de talento.
O Twitter é uma sorte de coroamento de todo esse processo de abreviação e afastamento do pensamento mais sereno e paciente sobre a eternidade e a morte. No sentido de ser a abreviação da abreviação [ou seja, da short-story; e depois dela, da postagem de blogue; e depois dela da mensagem no Orkut; e depois dela...]. Nisso ele se afasta sobretudo da prece. As preces tradicionais repetem verdades que seriam inacessíveis de atingir via Twitter. Ainda que algumas preces sejam curtas o suficiente para serem postas num tweet.
O provérbio era a narração condensada em uma sentença. No polo oposto, o tweet é a informação condensada em uma sentença.
O que pode ser posto em 140 caracteres e fazer algum sentido, quando não se é Bash ou os poetas chineses da dinastia T'ang?
O mais certo é o que disse uma jornalista que entrou recentemente no jogo da twittagem: “tem um mundo nesse Twitter, né?”
E é verdade. 
Mas muito mentira também.
E convenhamos um pouco também se vive de modismos. E o logo do Twitter foi extremamente bem desenhado.


* * *