sábado, 31 de março de 2012

Desfaçatologia


Há dias que a gente se sente como aquele extra que é pago pela Globo para estar na plateia, em geral de pé, mesmo que haja assentos, num programa de auditório. A câmera o colhe de perfil, supostamente encantado com a cantora que está no palco. Mas o desejo, a gente sabe, a gente vê, naquele olhar de soslaio, é mesmo o de olhar câmera no olho e mandar um beijo para a namorada, a família, o papagaio.

sexta-feira, 30 de março de 2012

Sequestrar um príncipe: a adiada questão do 28º estado

D. Maria II aos 17 anos, em 1836, carioca como o Corcovado ou Pixinguinha

Não deixa de ser um pouco estranho que se faça tanta piada de D. João VI e se desconheça a ampla visão política que ele tinha. Oliveira Lima explica. Seu livro é um clássico.
D. João foi o único monarca da Europa continental a se safar, astutamente, de Napoleão. E, claro, isso nos colocou numa situação sui-generis. A de o Rio de Janeiro, de uma hora para outra, tornar-se capital de um país na Europa. E foi o primeiro país transatlântico. E nunca mais houve país igual. Ou ao menos tão singular quanto o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves - e há aqui, no nome mesmo do país, uma assimetria que é brincadeira: basta comparar a área do Algarve à do Brasil. Uma questão de dimensões que fascinaria mentes como a de Borges.
Então, de momento, a ideia de Portugal unificar-se ao Brasil, como seu 28º estado devia ser mais considerada. Mesmo que não dê em muita coisa. Considerada pelos dois povos. Como uma ideia possível de ser concretizada um dia. Quem sabe num Quinto Império desses sonhados por Vieira, Pessoa e visionários da estirpe. Ou numa emergência - que, aliás, já se deu no passado. Pois parecemos esquecer que já fomos efetivamente um mesmo país, sem tirar nem pôr. Nas circunstâncias atuais, no entanto, a (re-)união seria até mais vantajosa para os portugueses. 
Se bem que não seria nada mau ter um estado na Europa. Do jeito que a gente empreende, seríamos séria concorrência para os alemães em breve prazo. E eles provavelmente vetariam o projeto, com ameaças de expulsão da UE e muito ressentimento. Mas quem sabe, do contrário, Portugal lucraria muito mais com o Mercosur. E, melhor, sem a empáfia dos alemães. E se veria atrelado a um projeto com alguma margem de futuro. Ao contrário da UE.
Além do que, seríamos um país cheio de soft-power e charme. O primeiro com praias em lados e hemisférios opostos do Atlântico. (Para não deixar fora de ressalto as gloriosas praias tropicais, limadas de sol e abertas ao surf). Com uma bela floresta - as da Europa já foram totalmente dizimadas - e os maiores rios do planeta. Uma biodiversidade como não há em parte alguma - pois se os portugueses foram os primeiros europeus a chegar em toda parte, naturalmente reservaram as melhores para si. E por isso as futuras gerações brasileiras lhes devem mais ser gratas que ressentidas. Como também por nos terem legado a prenda mais preciosa: a língua - que Cervantes chamou de "la dulce lengua". E que, graças a nossos irmãos indígenas e africanos, tornou-se ainda mais doce e estendida em léxico do lado de cá. 
Essa Europa vazando-se para o Brasil - e vice-versa - tornar-se-ia um lugar mais feliz. Arejado. Luminoso. Descontraído. Replena de gingas e bossas-novas. E nós exportaríamos mais commodities, aviões e carros movidos a etanol. Muito provavelmente, ao invés de Roterdã ou Hamburgo, seria necessário construir um novo terminal portuário na costa portuguesa (ou ampliar um já existente) exclusivamente para receber e escoar o tanto que o Brasil exportaria para a Europa. 
Inclusive para a Alemanha. E nesse meio-termo, calculem o que não lucraria Portugal como porta de entrada! Não é de hoje que a Lufthansa compra nossos jatos comerciais. (Como o Embraer E-195, um fantástico avião para 120 passageiros, fabricado em São José dos Campos, que é um sucesso de vendas ao redor do planeta.) A Alemanha iria comprar ainda mais, se tivéssemos juntos um naco de Europa. 
Muitas outras coisas teríamos a oferecer: a sofisticada tecnologia de exploração de petróleo em águas profundas, que responderia por uma autonomia de combustíveis extensiva a Portugal, como estado associado. Avanços nas pequisas de bio-medicina, células tronco ou bio-combustão - que, entre outras, fazem da Universidade de São Paulo a única de língua portuguesa listada entre as grandes, em nível mundial. Projetos como o Genoma são hoje referências no ambiente científico de meio mundo. A tendência é isso de pesquisas científicas de ponta disseminar-se para outras instituições brasileiras e, quem sabe, no futuro, chegar às portuguesas. E o que dizer de nossa expertise em energias alternativas? 
Portugal, de repente, faria parte de um projeto de megadimensões e poderia, entre muitas vantagens, co-participar de nossa base científica na Antártida. E, de outro modo, embora nem de longe entrasse como o estado mais rico da federação - pois só a economia do estado de São Paulo, que deixa um país como a Polônia no encalço, é cerca de sete vezes maior que a portuguesa (e a distância alagar-se-á consideravelmente nos próximos anos)  - ainda assim Portugal seria um estado importante. Estaria entre os dez mais ricos.  E haveria ainda outras compensações. Como, por exemplo, as desportivas. Poderíamos participar juntos da Eurocopa. E ganhar um  bocado de títulos. Senão quase todos.
De momento, apenas dois países europeus produzem mais riquezas que o Brasil: Alemanha e França. Mas o Brasil os ultrapassará nos próximos anos e assumirá o posto de quarta maior economia do mundo. O que, convenhamos, é de se comemorar. Mas não é tudo. Uma vez que, de momento, o PIB per capita brasileiro é apenas 1/3 do francês e pouco mais da metade do português. Já foi bem menos, num passado não tão remoto. As diferenças, sem embargo, podem ser ainda mais recortadas se nos empenharmos em atenuar os níveis de corrupção e distribuir mais equitativamente a renda. E, ainda assim, será apenas uma questão de tempo. Uns quinze anos (ou pouco mais que isso) para que o Brasil, como um todo, tenha um padrão de vida semelhante ao do atual Sul/Sudeste brasileiro, que é já próximo dos níveis do Sul da Europa. E em alguns lugares, pulverizados e esparsos, já se desfruta até de uma melhor qualidade de vida. 
Portugal, de sua parte, tornar-se-ia simplesmente parte de um país que concentra a terceira maior indústria aeronáutica do mundo e uma das maiores indústrias automobilísticas. De longe, seríamos o maior parque industrial da Europa. E, por amplíssima margem, o maior e mais diversificado exportador de grãos do Ocidente. Feras no agronegócio: soja, café, suco de laranja, carnes, arroz, frutas tropicais e subtropicais. Além de grande exportador de minério de ferro, aço, petróleo e derivados. O mercado interno brasileiro, livre de amarras e protecionismos, estaria escancarado ao vinho e ao azeite lusitanos. Para não falar dos empreendimentos imobiliários e do setor de telecomunicações e hotelaria.  Ou ainda da experiência de Portugal em África - um mercado no qual entraríamos juntos e fortalecidos: o conhecimento de causa de Portugal e o capital brasileiro. E claro, Portugal nos é muito mais suplementar do que suplementa os outros países europeus em termos de produção agrícola. E, re-claro, não prescindiríamos das boas sugestões na área do turismo e da pesca que Portugal teria a nos legar. Sem falar do mercado de trabalho: não haveria algo como um português desempregado.
Em termos de segurança, que não bulissem com Portugal. Do outro lado do Atlântico haveria 200 milhões de có-irmãos por argumento. E forças armadas proporcionais a esse contingente e em franca modernização, com destaque para a marinha, agora com permissão para patrulhar também no norte do Atlântico. Parece suficiente, por ora, e para os termos dos fascinados por geopolíticas.
É muito curioso, de outro modo, que Dona Maria da Glória, a irmã de D. Pedro II, depois Rainha de Portugal (D. Maria II), haja sido a única monarca a reinar na Europa nascida fora dela. (Seria um vaticínio?) De nascimento, Dona Maria é tão carioca quanto o Pão de Acúcar, a Unidos da Tijuca, Pixinguinha ou Antônio Carlos Jobim. Até nisso somos dois países um tanto predestinados à originalidade. Pois o Brasil é a única ex-colônia que ao se tornar independente tornou-se também capital da ex-metrópole. Isso é de uma simbologia à toda prova. 
Por essa época, a corte portuguesa tanto se afeiçoou ao Rio de Janeiro que foi   preciso uma revolução e tanto, no Porto, para que retornasse à Europa. A intenção era ficar. E quem conhece o Rio não pode culpá-los. E hoje só alguém sem  lucidez para não perceber que o futuro da língua portuguesa, em termos de peso global, está nas mãos do Brasil. O país é sócio dos cada vez mais influentes Brics. Faz parte do G-20. É candidato sério a uma vaga no Conselho de Segurança das Nações Unidas. 
O Brasil é uma das economias que mais tem prosperado em anos recentes, por estar assentada em bons fundamentos macro e possuir uma vasta população para consumir domesticamente, no caso de uma megacrise externa. Como a que atravessamos. E ainda assim, o Brasil cresceu quase dez por cento, somados os últimos dois anos, os mesmos em que a Europa deu para trás. A emergência de uma classe média, formada por contingentes populacionais até então à margem do consumo, operou uma verdadeira revolução nem tão silenciosa assim. E essa revolução teve impacto decisivo para a saúde econômica do país. Mas há ainda muito a ser feito. Como reduzir os níveis de corrupção. Consolidar uma rede confiável de educação e saúde pública. Além de aprofundar a divisão da renda e aprimorar a infra-estrutura.
À sua volta, o fato de o Brasil se ter mantido unificado deve-se muito à monarquia e, portanto, a Portugal. Mais de oitenta por cento. Pois, de outra maneira, teria sido impossível manter a unidade. Seriam republiquetas para todos gostos e lados. Principalmente no extremo Sul e sobretudo no Nordeste, onde as elites tinham mania de França àquela altura. E já eram republicanas. Mas republicanas com aquele senso de defasagem entre conceitos e realidade, que Roberto Schwarz caracteriza como "ideias fora do lugar". E mesmo ao tempo da independência ainda havia muita gente que nascera aqui, mas se considerava português. E, claro, havia muitos portugueses de facto morando do lado de cá da lagoa. Depois ainda chegariam cerca de um milhão, só ao longo do séc. XX. 
No início do sec. XIX, à exceção dos indígenas e africanos, não existia algo como ser brasileiro. Ou ao menos sem se considerar em anterioridade e parcialmente português, súbdito de El-Rey. Ser brasileiro foi uma construção que demorou décadas para emplacar. Seguiu alicerçando-se pelo sec. XIX afora. Sua consolidação se deve sobretudo aos dois imperadores (notadamente o segundo - que já nasceu aqui, e era alucinado pelo país, já que o primeiro só deu o impulso inicial e depois revelou-se até mais português que os portugueses); além da preciosa colaboração de hábeis políticos e homens de estado, como um José Bonifácio, um Evaristo da Veiga, um Bernardo Pereira de Vasconcelos, um Paulino José Soares de Souza, um Joaquim Nabuco, um José Maria da Silva Paranhos Jr. Alguns deles, os mais antigos, prévia e devidamente formados em Coimbra. E basta verificar os sobrenomes para saber de que Europa vieram os ancestrais desses fundadores. E há também os escritores, de uma tremenda consciência cívica: Gonçalves Dias, Alencar, Machado (que alguns portugueses chamam Assis), Euclydes da Cunha, Lima Barreto, Mário de Andrade entre outros. E que os portugueses podem ler sem lançar mão de traduções.
Coisa que pouca gente sabe é que os argentinos - que viviam imersos em caudilhices, anarquias, golpes, quarteladas, motins, secessões e guerras fratricidas - tentaram sequestrar um príncipe europeu para governá-los.
Tal a inveja que tinham dos nossos.

Geografia Estética de Fortaleza - os supertítulos à luz da manhã


a proposta é falar daqueles títulos que nos deixam mais felizes. Belos belos. Títulos que, em si, são formas da história. Conquistas futebolísticas. Ou perto disso

paulinho da Viola tem um samba chamado “Para um amor no Recife”. Sempre tive inveja branca desse título. E inda não inventei fórmula de lidar com essa inveja

a questão é delicada. A gente gosta do título, mas repeti-lo não é inventá-lo. Ou ressurgi-lo. Não se pode inventá-lo de novo, ao pé da letra. Ao pé da árvore de literalidades. E, como ele está na própria língua, sequer traduzi-lo. Talvez se possa apropriar-se dele para nomear texto que com ele não divide saco e sal. Mas isso pode dar trabalho

outro título que acho tremendo é o de um livro de Raimundo Girão: Geografia Estética de Fortaleza. O livro, que mapeia manifestações, grupos, tertúlias literárias, ateliês, cafés e saraus do tempo de Girão, meados do sec. XX, talvez seja de escasso interesse para todos que não lidam com memória ou história das cidades. Ou de uma cidade em específico: Fortaleza. Mas o título: que maravilha

ao menos no caso de Girão, dei um jeito de solucionar parcialmente a questão. A um artigo sobre urbanismo em Fortaleza, pus o nome de “Arquitetura Intuitiva da Aldeota”. É o mesmo princípio: “Substantivo Adjetivo Preposição Nome Próprio”

só que inusualmente bem combinados, no caso de Girão. Espero, um dia, poder editar em livro todos meus artigos sobre a cidade sob esse título: Arquitetura Intuitiva da Aldeota. E há um roteiro para documentário, escrito em 2006, também intitulado assim 

Cuscuz paulista


Desde quinta, A., há essas máquinas que fazem o recapeamento do asfalto estacionadas diante da porta de casa. Ontem, o vendedor de cuscuz paulista passou. E conversou com os trabalhadores:
-O que é isso, meu compade?
É cuscuz paulista, cidadão brasileiro!
Achei particularmente interessante o dia em que ele assoviou Imagine. Interessante, mas de partir o coração, por igual.

Hugo, o Nefasto



Hugo Chávez, visto como líder, faz parte daquela extensa linhagem de caudilhos que emperraram a modernização e a democratização da América Latina. Uma espécie de Perón reatualizado em versão venezuelana e com supostas sobretintas de esquerda. Que haja quem o admire e sonhe com uma solução boliviariana para o continente ou certos impasses em seus respectivos países dá testemunha da persistência do caudilhismo como modelo político.
Uma solução que passa pelo personalismo e o carisma de ditadores como Chávez é, na realidade, brutal retrocesso. Mas há ainda hoje os que louvam Cuba e os escandalosos arbítrios que se passam lá.
Parece que é mais fácil hostilizar o stalinismo do que o regime cubano. Mas não há vigorosas semelhanças entre ambos? 
Em janeiro passado, Chávez foi estampado em um portal como o da BBC a dizer que crê que os Estados Unidos estão por trás do fato de vários líderes na América do Sul (Ele próprio, Fernando Lugo, Cristina Kirschner, Lula) haverem contraído câncer. Os Estados Unidos e a santidade não combinam. O México sabe disso melhor que ninguém. Mas chega ao ridículo essa de câncer induzido, não fosse também uma aberração histórica, síndrome de perseguição tão ao gosto desses que se dizem “de luta”.

quinta-feira, 29 de março de 2012

Vão Gogo, o descendido Guru do Méier



O desagradável de abrir esses necrológios é ouvir dizer que Millôr Fernandes foi um artista multimídia antes do tempo. Não foi, não. O conceito de multimídia é que segue sendo um Millôr Fernandes tardio. O que surge é bem outra coisa, pautada por novas facilidades técnicas e gera novas percepções. Ora, desde que há artistas, há multimídias. O que pensar de Da Vinci? Ou antes dele do universalismo dos medievais? Não poderia ser diferente. E há praticamente uma sinonímia aqui. É de artistas transitar por todas esferas de sensibilidade ou canais de expressão, embora nem sempre precisem falar a respeito ou agir assim. Ou ainda explorar todos os veios com especialização. E seja até mais prudente não fazê-lo, em determinados circuitos. 
De resto, Millôr Fernandes não é propriamente um artista. Ele é um jornalista postado à porta de ideias férteis, um diarista da criação, um artesão bem informado sobre seu tempo. Sujeito de grande vivacidade de expressão, antes do sujeito ser morto por Barthes. De ganas expressivas. Só isso? Como o são ou foram Sérgio Porto, Ivan Lessa, Ruy Castro, Paulo Francis e alguns cronistas mineiros. Como o foi Rubem Braga. Como em certo sentido o foi um professor dessa geração: Otto Maria Carpeaux. 
Carpeaux, sim, talvez haja transcendido o jornalismo, a crônica na direção de esferas mais abstratas. Ou seja, de uma obra. Como, de resto, Lúcio Cardoso o fez. Ou Mário Faustino. É por isso que se ouve dizer que as frases de Millôr serão lidas daqui a cem anos. Mas não que Millôr será lido daqui a cem anos. 

Livre pensar foi só pensar. E uma vez Millôr Fernandes disse: quem me encontrar, me entregue para a Sílvia Pfeifer”. Outra vez, disse que "um idiota nunca aproveita a oportunidade. Na verdade muitas vezes o idiota é a oportunidade que os outros aproveitam".
Há três problemas com as frases de Millôr: 1) elas portam um excedente de wit; 2) funcionam melhor atadas a um contexto estrito de actualidade ou conjuntura política, tempo, lugar - ou seja, pouco conversam entre si; e 3) não suscitam que se vá atrás do solo que as fez germinar. Até porque esse solo não existe sob forma de obra consolidada.
Há autores que fizeram muito pouco para consolidar uma obra, no sentido convencional. Mas a obra está lá. A despeito deles. Mesmo não impressa em livro, gravada em disco, registrada em filme, instalação, vídeo, editada em partitura. A obra, claro, não é só um rol, um acervo de coisas feitas, materializadas, da qual se pode partir uma lasca. É algo menos ostensivo, mais misterioso. Sensibilidade que se nota para além da materialidade do realizado. Do organizado, vamos dizer assim. Obra é algo mais desorganizado. Que ocorre a despeito de uma vontade de controle. A obra, quem diria, é também algo mais virtual. 
Basta pensar em Torquato Neto. Em Ana Cristina Cesar. Leminski poderia ter sido mais sistemático com a sua? (E, no entanto, entenda-se, não é esse esforço de sistematização, no frigir, o que determina se será lida ou não lida. Nem mesmo se será obra.) 
Há, aqui, uma rarefação. Sobretudo os dois primeiros, Torquato e Cesar, publicaram pouco ou esparsamente em livro. E, no entanto sentimos: ambos têm uma obra. Ao contrário deles, Millôr Fernandes não tem. Millôr Fernandes, que escreveu e montou peças; publicou dezenas de livros; colaborou copiosamente em revistas e jornais; foi cartunista para veículos da grande imprensa; e é um tradutor considerável. Ele, que participou diretamente da vida cultural do Rio de Janeiro, desde quando a cidade ainda era ou recém-deixava de ser a capital do país, regurgitava com bossas, cinemas e neo-concretismos novinhos em folha. Ele que, a rigor, tem uma obra. Mas, a despeito de tudo isso, vejamos, ninguém nomeia qual seu livro predileto entre os de Fernandes. E por quê? Porque esse livro, a rigor, não existe. Todos falam de frases. De algo isolado. De mônada. Ou remetem-se a charges e cartoons pontuais. Ou ainda, à presença de espírito de Fernandes, que seria, segundo os íntimos, inclusive maior em sua fala que em sua escrita. 
Ok, nada ok. Os caras estão morrendo todos e a rodo. Ainda bem que ainda temos Ivan Lessa e Veríssimo. Por quanto tempo? Quantas frases mais? Saudades de Fernandes. Em especial, daquele de Veja aí pelos anos 70.
Bashevis Singer chamou a um de seus personagens "o Espinosa da Rua do Mercado". E para indicar essas figuras que ficam a meio termo entre certa erudição autodidata e o conhecimento mais pé-no-chão, senso-comum, terra-à-terra, concreto, local. Hoje, ambos, erudição auto-inflingida - sem orientador, sem guia turístico que "facilita" as teorias - e conhecimento do local são tão mais raros e urgentemente necessários a uma sociedade cuja inteligência inviabilizou-se no rito hierático dos departamentos. Um tanto assim como antes do logro das pós em humanidades, fôra o ambiente bacharel que necrosara o literário meio. Hoje ser pós-graduado equivale a antigamente ser bacharel. É a mesma esparrela onde se encontra mais casca que sumo.
Fernandes, no entanto, era alguém que passava ao largo disso. Quer dizer, vivia nesse meio-termo entre calçada e cátedra. Ainda na hesitação entre o bonde e a árvore, para lançar mão da fórmula de Drummond. Fernandes fez o primeiro grau incompleto. Mas traduzia do alemão. Não fez pós-graduação e, ainda assim, era detentor de meios, conhecia conceitos, dominava línguas, histórias, geografias, noções de estética que a maioria dos atuais doutores em letras desconhece. Daí que os apostos que incidem sobre ele contenham a fórmula agregada por Singer: conjugar província e cosmos. Fernandes era "o guru do Méier", "o La Fontaine de Ipanema", etc. E ele próprio, claro, estendia isso a alguns de seus personagens, caso do Vão Gogo, pseudônimo sob o qual assinou seus textos e cartuns nos primeiros anos de carreira. [Aqui, de resto, a insistência em chamá-lo de Fernandes vai em calculada contramão. Numa que não quer render-se à deslavada, especiosa, intimidade de tratá-lo por Millôr, um tanto como se refere a uma sorte de grife. Uma grife em piloto automático da mente. Pois Millôr infelizmente foi convertido muito nisso. Numa grife].
Se existe certo grau de obviedade, de organicidade intelecutal no humor de Millôr Fernandes - como existe no de Chico Anysio ou no de Chico Buarque - essa obviedade é expressa, em frequência, de uma forma mais atraente que nos queixumes pseudo-eruditos de gente como Diogo Mainardi, para um recorte analógico, desgeracional e entre os que se situam na crista da mídia. Agora, o amor de Fernandes pelas formas curtas, sintéticas, seu conhecimento delas - que responde por sua verdadeira instância moral, digamos assim - também o vacinaram contra aquele horrendo sentimentalismo mais meloso, que a gente encontra em nove de dez blogues que visita rede a meio hoje em dia. Fernandes manejava forjas de frases. Coisa de efeiteiro. De mestre do blague. De phrase-maker. De capataz das formas breves. Isso ele tinha em comum com os argentinos. [Ou com José Paulo Paes, que 'todomundo' já esqueceu, inclusive seus amigos concretistas.] Essa oficina feroz para chegar ao enxuto. O gosto por certa pose da palavra. Uma pose e uma posse da frase pequena, da respiração curta, que vai por haikos e epigramas, que pode ser lida também em Paulo Leminski - um que partiu de premissas tão distantes das de Fernandes. E, contudo, em um ou outro avulso passo, como os dois escrevem perto. Para depois distanciarem-se abissalmente. Para depois mergulharem em diferentes rumos na Fossa das Marianas.
O certo é que um a um, os nomes que faziam as revistas, os jornais, a TV, de meios a fins do passado século - meios de comunicação tremendamente mais hegemônicos e oligarcas que os de agora, pós-internet - seguem desaparecendo nestes inícios de anos 10. Eles são, ainda que não queiram, aquelas últimas versões de intelectuais à francesa, com a respeitabilidade paternal, patriarcal de consciência e nação. Capazes de assinar manifestos e análogas firulas ou esparrelas. Uma beleza desaparece com eles no instante em que surge uma outra. Também vulnerável. Efêmera. Como  para confirmar este curta-metragem de Fernandes que Leminski assinaria: 

não é segredo
somos feitos de pó
validade e muito medo

E, de outro modo, muito provavelmente a impressão de que eles eram eternos provinha apenas do prosaico fato de que a geração Pasquim  - e depois dela a geração MPB -  jamais se aposentou, embora haja sido precedida por uma geração em que o artista saía de cena à medida em que ficava velho ou mesmo atingia a meia-idade. Pensem nas vedetes, nas cantoras do rádio, em Dick Farney. E até esse envelhecer já comporta distâncias que não se medem a gritos entre, por exemplo, um Millôr Fernandes e um Chico Buarque. Ou seja, o que desapareceu efetivamente foi a figura do ancião, sábio e unânime. Um pouco inofensivo sexualmente. Algo que Fernandes, a seu modo, talvez ainda haja involuntariamente encarnado. E justo ele, que almejava ser o contrário de um pai, por iconoclastia.
No fundo, Millôr Fernandes era um moralista. Mais do que ele gostaria. E nem sempre no melhor senso da palavra. Seu livre-pensar rendia-se amplamente aos programas e projetos de esquerda. Quer dizer, àquele comunismozinho requentado, ralo, tacanho, à brasileira, louco para prospectar "alienações", para patrulhar ideologicamente - a exemplo do que faz o politicamente correto hoje com os "preconceitos". Foi o ambiente em que esteve imerso até a medula. Em que é mais razoável encontrá-lo. Mais até do que ele próprio, em seu auto-reivindicado anarquismo, poderia situar-se. É necessário, no mínimo, ter a lucidez de um Graciliano para escapar incólume a um ambiente assim. Nem todo mundo consegue.
À altura do desbunde, quando o sopro da contracultura finalmente lufou por aqui, aí pelos anos 70, tivemos retratos mais nítidos de quem era Millôr Fernandes. Reparem abaixo como - parodiando em reserva certo preceito de Catatau (em que Leminski indagava se "na bunada não vai dinha?) - Millôr Fernandes tanto escreveu em tom de censura (vejam que apela para uma espiritual "alminha"!), quanto rotulou de "permissiva" a maior liberalidade da recém-ética sexual dos jovens:

Eu também gosto
De permissividade, 
Garotada.
Mas, aqui entre nós,
E na alminha,
Não vai nada?

Não é assim também o recado (e o recato) de um intelectual que assume a condição do pai, do grande pai, do Padre, dirigindo-se com alguma complacência à "garotada", a solicitar-lhe um pouco mais de espiritualidade? Pois foi assim. De recato em recato. E, no entanto, se há um mérito na "mimeógrafo generation", é justamente o de um pluralidade de vozes que racha. Uma pluralidade como se não vai achar, então, nem entre os pasquins e engagés, nem entre os beletristas e bachareis da academia, nem entre os trotskistas, nem entre os católicos,  nem entre o udenistas ilustrados, nem entre os neo-concretistas, muito menos entre os concretistas. Nem mesmo entre os letristas da MPB. A "mimeógrafo generation" tem, assim, o mérito de, um tanto a despeito de si própria, haver sido a primeira geração de intelectuais no Brasil recortada para além da hegemonia. Para além de um certo consenso ou centralismo democrático à Gramsci. Ela rompe com esse centralismo um pouco programático e maniqueísta. Com essa hegemonia ainda tão deliberadamente buscada, com o espontaneísmo de um projeto naturalista, pela geração de Millôr Fernandes e seus companheiros, nas já longínquas décadas em que, escrevendo contra a censura, produziam novas censuras. 

Demétrius x Demóstenes


Houve um tempo - mais ou menos àquela altura em que toda a humanidade com menos de 25 morava em Fortaleza e fazia parte da mesma turma - que havia dois caras disputando o favor da mesma mina. Até aí, nada de mais, se um não se chamasse Demétrius. E o outro Demóstenes. Não é mentira.
Demétrius, por sinal, era percussionista de mão cheia e muito boa praça. A última vez que soube dele, morava em Belo Horizonte. Demóstenes, um tipo funesto, com cara de funcionário público alemão, sumiu no desvão dos tempos. Ambos, ao que parece, fizeram pontas em um pioneiro vídeo experimental de ficção que não sei se ainda existe. Mas se existir, há de ser uma espécie de avô de todos esses filmes experimentais que se fazem a rodo – e quase ninguém vê – nos diascorrentes. Salvo engano, foi rodado num condomínio, próximo à Praça Luiza Távora. Os caras se obcecaram pela mina. E a disputa foi acre.
Um tanto fascinados pela mágica das palavras, ríamos muito do duelo, marcado por esses dois nomes pomposos, gregos, clássicos. E até bastante parecidos. Há um certo gosto cearense por nomes clássicos, não? Heráclito Graça ou Fortes. Demócrito Rocha ou Dummar. Que tal Meton de Alencar? Alcebíades, Mardônios, Ulisses, Péricles, Cíceros, Plínios, Laertes, Agenores, Agamenons, Nestores. Diógenes como sobrenome de família - originária, aliás, das ribeiras do Jaguaribe, infestadas de jagunços, cheias de histórias de encomendas de morte e pistolagens.
Mas, e a menina?
A menina no correr do conto interessou-se por linguagens visuais. E tempos depois foi minha aluna no Curso de Comunicação da FIC – de onde, aliás, saíram ou prosseguiram na carreira muita gente boa: Maísa Vasconcelos, Joana Cruz, Mariana Sasso, Zé Rosa, Alysson Oliveira, Ribamar Bezerra, Diego Lage e outros. Uma bela turma. Mas ela foi um pouco anterior a essa turma, pensando melhor. A última vez que a vi, tinha casado com outra menina, que não havia entrado na história. Não sei o que faz hoje. E em dia. Nem é o caso.
É o caso lembrar o quanto havia de kitsch no ar por aquela altura. Como sinergia coletiva. A década de 70 era brega. Mas de um brega arejado. O brega dos 80 era decadência rematada. Na moda e naqueles horrendos cortes de cabelo geométricos. De Chororó e Titãozinho não pode provir muito bom design para cabelos. Ou no quão musicalmente previsíveis são grupos como The Smiths ou The Cure. Talvez The Jam escape e sem boas-vontades. Há quem goste dos dois primeiros, no entanto. Conheço certa garota - ela chegou a tocar um pouco de contrabaixo - que esfolaria vivo qualquer um que ousasse falar mal de Robert Smith. De resto, mais adiante, são necessárias idolatrias assim conjugadas a gatos, cães, calopsitas e papagaios para compensar-se da falta de filhos. Ou explicar Freud.
Ah, vida pré-internet. Mas a automática sensação de riso quando se pensa nesse surdo, áspero duelo Demétrius X Demóstenes na Fortaleza Bela dos loucos, kitches e perdidos anos 80. 
Um clássico.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Messi, o minimalista entre os grandes


E hoje, nessa partida de fazer sonhar, Milan x Barcelona, todas as atenções dirigidas a Messi. E Messi bem as merece. Ele é já o melhor jogador do mundo dentro e fora de campo.
Dentro, dispensa comentários. O curioso é que fora também.
Enquanto Maradona quase se matou e Pelé até hoje é assombrado pela necessidade de sempre reafirmar-se o melhor do mundo onde quer que vá, Messi – ao contrário de ambos ou ainda de Neymar, Cristiano Ronaldo, Ronaldinho, Ronaldo e uma pá de outros aldos e boleiros por aí – praticamente não existe fora de campo.
Fantástico. Ele parece dizer sem dizer: “antes de mais nada, um jogador de futebol deve ser conhecido por jogar futebol”. 

Dos Novos Malls e a Partir

Pedestres chegando e saindo de um shopping em Vilnius, Lituânia

Em Amsterdã, o estacionamento de bicicletas do Piazza Shopping é subterrâneo

Na Europa, na China, shoppings que privilegiam pedestres e ciclistas, abertos ao exterior, em interação com a vizinhança, suplementados por moradias, com amplos e seguros estacionamentos para bicicletas, integrados aos corredores de transporte público - à base de metrôs, bondes, vlt's, monotrilhos, ônibus elétricos - lançando mão de energias limpas, renováveis, captando água de chuva, são a tendência. Espaços que se pode atravessar a pé, sentindo a brisa nas árvores ou o sol da manhã, como numa calçada de bairro. Que quando acabamos de perfazê-los, caímos de novo na cidade quase sem sentir. Que abrem-se permanentemente para a cidade, e estão longe de serem mônadas.


Por que insistimos no modelo de shoppings de estilo americano: segregados, ultrapassados, privilegiando o automóvel; ilhas fechadas sobre si mesmas, e cedendo, ao invés de parques e praças, estacionamentos, que são pontos cegos noite alta, madrugada e boa parte da manhã? No Chile, país que já tem um padrão de vida análogo ao europeu – lá já se pode por exemplo beber água da torneira, primeiro indício – esboçam-se soluções diferentes.

A ressalva é a de que mesmo na Europa, a proliferação desses novos shoppings é tendência recente. E ainda se constroem muitos malls de padrão americano. Mas seria estupendo que se começasse a construir centros de comércio desse tipo por aqui. E, o máximo possível, adaptados às circunstâncias locais, quando se tem tudo à volta e à vista: sol, vento, chuvas (na primeira parte do ano); nenhum problema com frio ou necessidade de calefação, etc. Relevo pouco acidentado, favorável ao ciclismo urbano. E logo necessitaríamos apenas criar mais sombra de árvores ao longo das vias para atenuar os excessos de sol e calor. Já para o interior dos edifícios, espanta, por exemplo, o fato de ainda não se ter desenvolvido um sistema de condicionamento de ar mais eficiente e natural, que dispenda menos energia.

De outro modo, tanta ênfase se pôs no carro e no caminhão que os penalizados são os que mereciam mais incentivos. De um lado, pedestres, ciclistas e motociclistas – justamente os que morrem como piolhos no tráfego de veículos das grandes cidades. De outro, praticamente não há transporte ferroviário e hidroviário para passageiros no país. Isso para não falar que o de cargas é irrisório.

No caso de Fortaleza, passa a medida de nossa inércia que ninguém haja ao menos estudado a viabilidade de ferryboats, catamarãs ou lanchas de transporte de passageiros modernas, seguras, de boa velocidade e conforto, que pudessem cobrir um percurso como Porto das Dunas/Centro com paradas no Mucuripe, Meireles, Praia de Iracema. No Oeste pode-se pensar em Icaraí/Centro ou mesmo, numa linha mais estendida Pecém/Centro. Não seria uma forma muito mais bela de fazer esse trajeto diariamente. E muito menos estressante? Não iria desafogar um bocado o trânsito, desde que houvesse ancoradouros em pontos estratégicos, como Eusébio, Sabiaguaba, Cumbuco e Barra do Ceará, por exemplo? Mas isso não é sequer cogitado. Assim como ciclovias de verdade e uma ampla implantação do vlt – mesmo que já se tenha uma indústria que os fabrica, no sul do estado. E o vlt é solução muito mais barata e requer menos preparo de implantação, menos intervenções urbanas, que o metrô. É necessário apenas estudar bem onde e como implantá-lo. Ainda assim, seguimos marcando passo com automóveis numa ponta e ônibus lotados e ineficientes na outra. E, como sempre, apenas copiando. Copiando. Copiando desesperadamente, no piloto automático e nem sempre as melhores soluções. Sem qualquer possibilidade de inventar nossas próprias soluções. 
Porque fomos educados para isso. 

terça-feira, 27 de março de 2012

Buridan no iPhone



Agora, ele vai saber com quantos dáblios se faz um water closet. 
E até isso se quebra. Quando, meio involuntariamente e por encanto, começa-se a entender que w é o dobro do v. E é o que ninguém mais figura por excesso de proximidade, entropia. E é esse u ou v duplo também em inglês ou espanhol, matriz de palavra, que ela agora contempla à altura do dedo, no visor do iPhone. A letra no princípio do Nome. Do Verbo. E é liga. Não liga. Liga. 
“Mamãezinha vai pra academia e me diz pr'eu apertar aquele ali bem no cantinho, se não chover canivete na segunda-feira”.

É Liga.

O Hades em resumo



quando se vê conquistar uma mulher, deve-se esquecer qualquer dobra de franqueza. Mulheres e franqueza não são boas vizinhas. E tentar conversar com elas em determinadas circunstâncias é o mesmo de quando elas desejam ardentemente discutir a relação no meio daquela final da Liga dos Campeões.

Em resumo, el inferno en la tierra.

Eis porque apesar do enfado dessas crises, um casal que de fato acasalou, volta a acasalar. E a coisa é lançada para diante. Os dois recebem compensações análogas mas diferentes. E, sem embargo, semelhantes em suas diferenças à de uma criança quando ganha um mascote novo. E logo sabe conversar com ele. E por ele ser deixada em dúvida.

Paradoxo do Prazer



Uma mulher antes de abater-se deve prosseguir bonita quando ficar de pé. Assim  há mais chances de as coisas engrenarem. E o mundo respirar.
Suponha que um mulher possa ainda ser para uma homem. E conversamente. E então ambos possam inventar(-se) a cada sopro. (E não será pedir demais, mesmo nos diascorrentes em que isso parece tão passado? Afinal, dizem, preferíveis identidades efêmeras). 
Mas e a impressão que esse roteiro já foi escrito antes. E quem escreveu, hoje não parece lá muito feliz. 


Na Brasileira do Chiado de um sonho


ela gostava de Pessoa. Uma vez, na Brazileira do Chiado de um sonho, encontrou com o poeta. E ele:
-Não atino com esse gosto que os brasileiros têm por “Tabacaria”. Mas ao menos, pequena, nenhuma marca de chocolate a tomou como slogan. Sirva-se. 
E, então, ela comeu o teclado da máquina de escrever do poeta.

segunda-feira, 26 de março de 2012

as pessoas não são o que gostam



as pessoas não são o que elas gostam. O que elas gostam é algo mais raso. Já aquilo que elas são é o que retira areia do leito do Nilo. Para fazer pirâmides. Acercar-se dos deuses. Matar operários. Depois a gente decide se gosta ou não do estilo das pirâmides

Para um Amor no Recife

A Capela Dourada (Convento de Santo Antônio), Recife


Em edição recente do Público:

Em tribunal, segundo a imprensa brasileira, o advogado das estudantes de Paraíba explicou que a letra da música, registada em nome de Sharon Acioly, foi criada em 2006, quando as três fizeram uma viagem à Disneyland, nos Estados Unidos da América.

Ah, o modo como preposições, acompanhadas ou não de artigos, indicam o grau de intimidade que se tem com um local. Muita gente diz no Sergipe. Muita gente do Sul - mas não de Sul. Qualquer sergipano diz em Sergipe. Todos dizem em Lisboa. Ninguém diz no Pernambuco. Paulinho da Viola diz como os recifenses. Maria, que mora na Rua das Creoulas, também. E você?

Talvez por temperamento, portugueses e nordestinos esbanjam artigos: a Maria, a Kalu, o Vasco, a Joana. Um ar de intimidade sitia o ambiente. Alguns escrevem: esse poema é da Ana Cristina Cesar. Aquele quadro, do Miró. E, aqui, parece que a intimidade excede. Mas é curioso. A leitora mais dedicada de Ana Cristina Cesar que conheci, me dizia, no entanto: "Esse poema? é de Ana Cristina Cesar". De Ana. Da Ana. De Anna, com dois n's, que vive passando por aqui (ainda bem). Dianna, a da canção de Paul Anka. Et All.

Por outro lado, os mais antigos diziam que iam para Furtaleza, em pronúncia. Brasileiros dizem P[ó]rtugal. Portugueses, P[u]rtugal. (Aliás, um Purtugal bastante esganiçado). Mas isso já são outros portos e Quinhentos. Ou seriam purtos? (Já imaginaram em Porto e não no Porto?).

Dia desses duas amigas foram a Portugal. Uma foi com a mala mais ou menos vazia. Mas trouxe um sobrepeso de lembranças, saudades. A outra foi com as malas mais ou menos cheias de próclises. Para fazer escambo. Algo estranho aconteceu. E ela acabou trocando-as por ênclises chinesas, no Bairro Alto. Feitas com material ordinário, essas ênclises dão afta.

E os tempos seguem de crise. 

domingo, 25 de março de 2012

eu e a palavra urubu no pormenor de um sábado da quaresma


gosto da palavra urubu. ela tem algo de tupi que eu não renego. e talvez eu tenha algo de nômade que ela quer. de forma que os pronomes relativos nos reúnem. a última vez que fui ao supermercado, comprava frutas. e quando me virei, ela me olhava densa, sossegada com aqueles olhos gostosos, um pouco sonsos de te quiero. mas desde que a pronuncio numa língua europeia, ela também soa assim engraçada. meio primitiva, distante, com essa vogal reiterando. e soa engraçada mesmo a mim, que nunca vou ser inteiramente europeu. que às vezes pressinto numa fração de segundo a cor negra de seus us nas penas da ave. soar engraçado. e, pior, a palavra urubu - bater de asas, flecha, chispa posta em equação - sabe bem a quem soa. e então revoa sobre fortaleza como el condor pasa, personagem de cartoon. um vôo impossível, aliás: o dia é chuvoso. e, ainda assim, nessa grande fantasia que é linguagem, ela e eu seguimos juntos tomando banho de chuva e debochando da semiótica em banho-maria e do departamento de letras vernáculas.

se você disser que eu desafino - ainda humor


aliás, trazendo do post prévio, que talento é João Claudio Moreno. Vejam - os que tiverem tempo - este trecho do Programa do Jô, ano passado (imitações de Nelson Rodrigues e um tremendo Ariano Suassuna [8:15]). Ou, para ir direto à essência, a impagável parodia de João Gilberto [a partir de 11:10] e excelentes Dercy Gonçalves e Caetano Veloso. Não se trata só de dicção, timbre, escanção, etc., mas das expressões, tiques faciais, respiração e quejandos.

sábado, 24 de março de 2012

7 Chicos & tipos de antologia + uma consideração final



Popó
Velhote ranzinza, hipocondríaco, misantropo. Saído de um museu. Reclamava de tudo, de todos. Em birra permanente com enfermeiras e, sobretudo, com seu paciente e amigo Albamerindo – um dos “escadas” mais brilhantes da teledramaturgia. Popó desmentia qualquer idealização da velhice como melhor idade. Nenhuma sabedoria: tudo neurastenias. Parecia indicar o quanto o que se enche a boca para chamar de experiência é muito mais enfado, cansaço, ressentimento, rancor. Quem não conhece ou é alguém assim?
Lingote
O bicho-grilo com voz de baixo profundo que cuspia mais gírias e disparates por segundo que banguelo cospe semente em fim de feira. Eterno garotão na vida mental - embora visivelmente já com a vida pelo meio - Lingote era malandro e um tanto inofensivo. A não ser a si mesmo. Longe de sua turma, logo caia em crises existenciais inúteis e becos outros sem saída. Mestre em buscar coceiras e sarnas, feito certos malucos dos tempos de graduação e depois.
Pantaleão
Em 1927, as coisas eram maiores, mais brilhantes. Os homens conversavam com os bichos. Pontuados pela mais deslavada mania de distorcer para mais, os hiperbólicos relatos de Pantaleão eram o índice do tanto que a "época dourada" está sempre em outro tempo. Em geral, no tempo da juventude de quem narra. Terta e Pedro Bó, dignos escudeiro desse mitômano, criaram nexos para seus melhores sketches. Assim como a cadeira de balanço e o alpendre. 
Alberto Roberto -
Galã autocentrado, canastrão, vagamente inspirado em Meira/Cuoco, segundo uns; ou mais diretamente em Hélio Souto, segundo outros, Alberto Roberto era tosco e, no fundo, ingênuo como uma prima-donna. O artista megalômano por excelência, que desprezava qualquer colega de ofício, fosse Brando, De Niro ou Al Pacino. Roía o juízo de quem vinha contracenar com ele. E era ainda melhor quando dividia as falas com um Lúcio Mauro na pele de diretor, tentando remendar a cena e contemporizar a qualquer custo.
Coalhada -
Ex-jogador em atividade, depois de haver assinado muitos contratos em branco. Medíocre mas carismático a seu modo. Amigo das farras, Coalhada vivia, um tanto posterior a elas, já de brisa e improviso. Permanentemente sem dinheiro, na iminência de assinar um contrato maravilhoso, que só existia em seus melhores sonhos. Era assombrado ainda por uma crônica dificuldade de expressão, formando termos com cacos de palavras e traduzindo-se por um futebolês perto de indistinguível.
Roberval Taylor - 
O locutor de rádio por excelência: "prefixos" e clichês impagáveis. No fundo, pegando um atalho para o incomunicável. Depois, como sucede na vida real, migrou para a TV. A voz estilizada, possante. O sentimentalismo e a oscilação de mentalidade análogas ao nome. Ou seja, entre Holywood (Taylor) e o mais afetado cafundó do Judas (Roberval). Uma metáfora da dualidade que passa recibo de Brasil. Do Brasil de então e, por que não, ainda de agora. 
Canavieira -
Prefeito inescrupuloso, acoronelado, com sotaque do Nordeste e todos subentendidos, tiques e reticências que isso implica. Pré-anuncia o Odorico Paraguaçu, que posteriormente Paulo Gracindo irá consagrar no Bem-Amado. E bem pode ser melhor avaliado nesta amostra de Youtube, que é já sua segunda encarnação, e onde se evidencia a sonsa colaboração de João Mocó [João Claudio Moreno].
*
No caso de Chico Anysio, o cigarro o foi debilitando fisicamente e o politicamente correto lhe acertou a pá de cal no espírito. O humor praticado por ele, Jô Soares, Renato Aragão e outros nos anos 70 não teria a menor chance hoje. Era perspicaz e corrosivamente sem censura, sob determinados aspectos. Embora, paradoxalmente, convivesse com uma censura ostensiva. A censura de hoje em dia, no entanto, não é menor, sob outros determinados, óbvios aspectos. E é ao menos tão nefasta quanto.


Urubu tá com raiva do boi



BIS, PLEASE!
Ontem, após a morte de Chico Anysio, o Público, jornal português, estampou em sua nota de falecimento uma vistosa foto de Renato Aragão. Comunicados do erro, céleres substituíram a foto. Mas por uma de Agildo Ribeiro. Novamente notificados, finalmente chegaram a uma foto do humorista de Maranguape. Ufa! Definitivamente, Chico Anysio e o Google não são muito populares entre os redatores do Público.
Enquanto isso, lá no distante Brasil - dois cliques (ou menos) de mouse Tejo afora, pelos virtuais mares do Ocidente - dezenas de milhares de fotos em jornais e portais, estado após outro, exibiam duzentas versões de Chico Anysio. 
Deve ter sido isso. 
*
O SAPO A COBRA LHE DEVORA
Nos 70, o humorista cearense fez um transfer do tropicalismo para a TV com condimentos próprios de antropofagia. Toda a saudável anarquia que se vê em filmes como Macunaíma ou nas canções de Gil e Caetano vai desaguar em Chico City. E em Chico City um dos melhores momentos – mérito compartido com o excelente Arnaud Rodrigues - é a própria paródia dos criadores do tropicalismo. Como neste Urubu tá com raiva do boi

a palavra cavalo serve?: Behr


A Missa

em nome do pai, do filho e do espírito santo
depois da missa vou jogar bola e pescar
cantemos todos o canto de entrada - de pé
tenho vara, linha, chumbada e isca boa, minhoca
bendito seja deus que nos reuniu no amor de cristo
eu e inácio vamos pescar naquele trecho do rio, difícil
deus pai todo poderoso tenha compaixão de nós
mamãe veio me visitar e fomos tomar guaraná
leitura da carta de são paulo apóstolo aos romanos
ela vem de novo mês que vem e vamos tomar
guaraná de novo, ela disse, ela prometeu
senhor, tende piedade de nós
não sei o que faço para aprender matemática
evangelho de jesus cristo segundo são lucas
é tempo de manga rosa na casa da dona alair
glória a deus nas alturas
só que lá na casa dela agora tem cachorro bravo
e paz na terra aos homens de boa vontade
irmã deolinda está na missa, bem ali na frente, linda
senhor deus, rei dos céus, deus pais todo poderoso
só faltam três semanas pra gente sair de férias
nós vos damos graça por vossa imensa glória
meu irmão puxou minha orelha, sangrou, doeu
vós, que tirais o pecado do mundo
tende piedade de nós
aquele cacho de banana que escondi na roça
dos padres deve estar bem maduro
vós, que estais à direita do pai tende piedade de nós
vou lá sozinho, comer aquele cacho de banana sozinho
vinde a mim os que têm fome - glória a vós, senhor
não subo mais em pé de abacate, caí, quase morro
segura na mão de deus que ele te sustentará
que pena - vão derrubar o muro da casa do seu João - aí
não vai ter mais graça roubar manga lá
oh meu bom Jesus que a todos conduz 
olhai as crianças do nosso brasil
ah, mas ainda tem muitos outros quintais pra gente
roubar manga, não vai faltar manga nem quintal
o senhor esteja convosco. ele está no meio de nós
quando eu for na fazenda quero andar a cavalo
senhor, eu não sou digno que entreis em minha morada
mas dizei uma só palavra e serei salvo
que palavra será essa meu deus! a palavra 
cavalo serve? e se meu pai vendeu o cavalo?
cordeiro de deus que tirais o pecado do mundo
será que tô com bicho-de-pé de novo?
no amor e na comunhão do espírito santo
estou arrependido de ter tocado fogo no sapo
abençoe-vos deus todo poderoso, pai, filho e espírito santo
aleluia! aleluia! aleluia!
a missa está no fim e eu não quero ser goleiro outra vez
ide em paz e o senhor vos acompanhe
amém! gol! amém! gol! amém! gol! amém! graças a deus!
pela primeira vez meu time ganhou do time dos anjos


Nicolas Behr

quinta-feira, 22 de março de 2012

Perigo: professora demasiado sexy!

Michela Roth em foto postada em seu Facebook

Mães e pais de Castello di Serravalle, na região de Bolonha, norte da Itália, começaram a notar que os meninos, ao invés de reclamarem ter de ir para a escola, estavam cada vez mais alvoroçados para ir. Dormiam cedo, bem e sem reclamar. Acordavam dispostos que nem preás dentro de meias. E seguiam para o colégio, sorrisos largos como o Golfo do México. Mistério?
Não tardaram a descobrir a razão: Michela Roth. A professora, que tem nacionalidade americana e 38 anos, foi notícia nos jornais de meia Europa esta semana. E por quê?
Porque mães e pais têm retirado seus filhos da sala de aula de Roth. A alegação: Roth é demasiado sexy. Recentemente os pais descobriram que a professora americana havia posado para um desses calendários que se põe à parede. Roth replica que os pais é que são invejosos: "Não sou monja, mas também não dou aulas de biquíni", diz.
Agora, provavelmente daqui uns tempos vai ter menino se revoltando contra pai e mãe. Ou no mínimo abrindo processo por danos e traumas morais (ou de quebra da sedimentação da imago feminina) contra a Igreja Católica - que também andou se metendo em mais essa, ao lado dos pais, claro. 
Parece haver muito preconceito: que culpa a moça tem de ser como é? Ou quem pode lhe censurar o que ela escolhe fazer nas horas vagas? Um pouco de flexibilidade não faz mal a ninguém. Professores não ganham fortunas. E flexibilidade não parece ser exatamente o fraco de Miss Roth. Para uma modelo amadora, ela sai bem nas fotos. Ou seria para uma modelo tout court? E há que se louvar certo upgrade anatômico das norte-americanas de uns tempos para cá. Como diz o poeta, "a thing of beauty is a joy forever".

Hora do recreio, posando nas gloriosas, esguias colinas da Emilia-Romagna